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Artigo: Os desafios para as mulheres negras na retomada da democracia

*Por Carol Bernardeli

Talvez você não saiba, mas, no Brasil, 1/3 da população são de mulheres negras. Se não considerarmos a potência numérica dessas cidadãs, nossa democracia, uma entidade ainda frágil e perseguida, encontrará inúmeros obstáculos à frente para promover, de fato, mudanças significativas (sociais, políticas ou econômicas).

O Brasil nos mostra, cotidianamente, que mulheres são vulneráveis. Jamais uso a palavra ‘fraca’, nem romantizo o termo ‘vulnerabilidade’. Aqui, reforço com tranquilidade que mulheres negras estão em risco. Sempre. Correm risco seus corpos, suas mentes, suas finanças, seus sonhos, seus filhos. Não incluímos essas mulheres no conceito lúdico de ‘Pátria, Família e Liberdade’. Até porque, todos aqui sabemos a origem fascista desse “slogan” já utilizado em outros momentos da história, inclusive estampado em jornais da Ku Klux Klan que defendiam a supremacia branca e a apuração das raças. O nome desse jornal? “The Good Citizen”. Traduzindo: “O cidadão de bem”. Não é coincidência, é história cíclica e gratuita para nossa análise.

As brasileiras negras ainda recebem até 40% menos que homens ocupando a mesma posição no mercado de trabalho. Ou, comparado a mulheres brancas, 20% em média de injustiça salarial. Essas mulheres somam, no Brasil de hoje, mais de 6 milhões de empregadas domésticas, reforçando que “domesticadas” dão menos trabalho e não buscarão a liberdade. Ah, e que se mantenham longe das escolas também.

Lembro que a maior taxa de evasão escolar no primeiro ciclo do ensino médio é justamente de mulheres pretas e pardas, que estão longe de serem maioria nas universidades do Brasil. Se você passeia pelos lugares de poder, política e alta administração de empresas por exemplo, encontrar mulheres negras é quase impossível ainda.

Nessa reflexão, em absolutamente nenhum momento tratamos do fato de mulheres negras poderem escolher seu papel na sociedade. Justamente porque nunca puderam e ainda não podem. Se suas mazelas são expostas, estão sendo fracas. Se seguem em frente enfrentando, a sociedade ganha uma falsa - e conveniente - impressão de que mulheres negras são super-heroínas, fortes e corajosas. A sensação de culpa dos não-negros diminui se pensam assim. Exemplifico que uma das consequências desse pensamento é, dentre outras estatísticas, termos mulheres negras tomando menos anestesias em centros cirúrgicos se comparadas às mulheres brancas. Há quem diga que “elas aguentam mais a dor”. Não!

A certeza que temos é sobretudo a de que mulheres negras não decidem sobre suas vidas individualmente como mereciam, mas são as grandes decisoras massivas da nossa sociedade. Essas brasileiras elegem o tom social e político do Brasil há anos, simplesmente por serem maioria na sociedade. Talvez por isso vê-las simplesmente praticando seu direito democrático incomoda a muitos.

Não contar com mulheres negras para planejar políticas públicas não somente é injusto, mas também estúpido. Enquanto brancos elitistas ou falsamente elitizados gritam por ditadura e outras barbáries na porta de quartéis, pisoteando a História e seus ciclos, as mulheres negras seguem sendo coerentes, com a História e com suas vontades.

Ao fim desse mês da Consciência Negra, torço para que em todas as épocas do ano trabalhemos para que mulheres negras no Brasil vivenciem sua liberdade e possam escolher. Mas, verdadeiramente. Democracia só existe se aliada com a liberdade e a capacidade de escolha. Se te aponto a liberdade, mas não te permito escolher, não posso afirmar ter apresentado a você o conceito de democracia ainda, não em sua totalidade. As mulheres negras do nosso país ainda não desfrutam da democracia como merecem, mas guiam as regras do jogo democrático simplesmente por serem quem são. Essa é a reflexão.

*Carol Bernardeli é engenheira pela UFV, líder em política pela Universidade de Harvard e filiada do Partido Verde (MG). Foi embaixadora da Confederação Brasileira de Empresas Juniores e presidenta da Federação das Empresas Juniores de MG